janeiro 01, 2011

- Textículos (Ensaios & Palpites)

Pequenos textos foragidos e emoções diversas

(Anos vários)



Galinhagem




Ok, vamos aos fatos. 
Há 40 anos que me chamam de galinha, então assumi o papel e vou em frente.
A verdade é que homens são como são em decorrência de uma série de fatores e não apenas do seu caráter (ou da falta dele).
O tesão masculino, no aspecto da quase permanente disponibilidade para uma variedade de parceiras é um fato. Se opõe, nesses dois particulares, ao tesão feminino que não é permanente e tende a se dirigir para um ou poucos parceiros, precedidos, quase sempre de certos rituais exóticos de acasalamento.
Tal característica masculina é atávica, está presente na maioria das espécies com reprodução sexuada; é hormonal, a tal da testosterona e outros menos votados são, literalmente, fodas; é cultural, herdamos, desde o tacape até a tribo tecnológica, a necessidade de pelo menos desejar ser um macho alfa; é estético, o prazer de olhar é estimulante e quanto mais perfeita a obra, maior a apreciação; é psicológico, afirma o ego basal, oferece bem estar físico e mental, recupera energias mais prontamente; é social, prova aos demais que se é um macho funcional, estimula outras fêmeas e, conforme o caso, algumas coisas não tão evidentes como reforço de liderança, sucesso profissional, vantagens competitivas e afins.
Tentar ocultar o fato de que o homem é galinha é de uma burrice indigna da espécie não avícola em questão. Cego é o homem que não assume esta condição, seja ele um casto frade, um pai de família, um presidiário sem visitas íntimas ou, ainda, qualquer outra vítima da execrável moda do  politicamente correto. O homem deve ser galinha para assim se qualificar, é intrínseco.
E tola é a mulher que toma este epíteto como algo diminutivo, pejorativo ou insultuoso e recusa tal complemento (o galinha), desenvolvido ao longo das eras para ser adequado e perfeito à feminilidade carente ou não, bela ou feia, dadivosa ou soberba, preferencialmente gostosa.
Nada como a lucidez, a honestidade intelectual de enxergar a realidade tal como é, e celebrá-la: Viva a galinhagem!



Paixão






















Outro dia, numa crítica emocionada, alguém com muitos sentimentos disparou uma frase desconcertante: - Você não é capaz de se apaixonar!
Senti-me o sórdido dos sórdidos, um egoísta plenipotenciário, avacalhador dos afetos alheios, desprezível criatura a desprezar o sentimento sublime de se envolver até e além do pescoço com um ser humano do sexo oposto que me ofertava mais que seu corpo e dedicação, sua vida e sua história, seu futuro, presente e passado, entregava-me sem titubeio sua própria sobrevivência como pessoa.
Fui para casa consternado, deitei-me no meu leito egocêntrico e comecei a lembrar-me das muitas vezes em que me apaixonei. Constatei arrasado que, realmente, há muito tempo não experimento a sensação. Fiquei me questionando se novamente seria capaz de sentí-la, se estaria pronto para viver outra vez o turbilhão que a paixão insere em cada um dos minutos, horas, dias, anos, da nossa existência. Aquele frenesí de estar junto, o desejo incoercível de ter aquela pessoa só minha, a volúpia de me apoderar do seu corpo, sua vida, seus pensamentos e seus sentimentos, do seu tempo.
Recordei-me de cada uma das minhas inúmeras paixões, das emoções intensas e totais que me precipitavam em atos cada vez mais impensados, desde os lindos aos dramáticos, da poesia mais pura à agressão mais virulenta; da irracionalidade de uma posse insaciável, que não se cansa de possuir cada vez mais um ao outro até ser “um só”.
Acordei com a certeza de que a frase, menos do que um anátema, era uma benção.
Sim, hoje espero ser incapaz de me apaixonar. Torço por isso, desejo que nunca mais aconteça e eu possa simplesmente amar.
Constatei que a paixão só me trouxe paroxismos tão vastamente deliciosos quanto inúteis e até nocivos para o crescimento, amadurecimento e libertação das duas pessoas que a experimentavam.
Optei pelo amor. O amor não invade, não toma, não requisita. Apenas se demonstra como uma equação inequívoca, onde incógnitas são descobertas e o resultado é de uma harmonia matemática, pois não depende de aceitação e compromisso de ninguém, apenas de existir descoberto, resolvido e, eventualmente, revelado.
Quando existe, não se consome nas vicissitudes do dia-a-dia, mas permanece para ser absorvido e usufruído quando e como quem amo o desejar, precisar, chamar, pedir, imaginar ou mesmo nem pensar nisso.
Amar quem amo é minha forma de estar no mundo, de estar junto, compartilhar, ser solidário em qualquer prazer ou dor sem exigência ou reserva, sem posse ou exclusividade.
Amar quem amo é quase egoísta, pois supre minha vida de motivo e beleza ao mobilizar-me inteiro para cada objeto de amor.
Ensina-me, a todo momento, o poder do compartilhar, desde a humildade da minha eventual desnecessidade, até a importância da minha sabida, palpável e muitas vezes usada existência.
- Sou incapaz de me apaixonar?
Tomara que seja.


Babi


Nunca mais direi o que é amizade. Vou dizer que a viví.
Durante quarenta e quatro anos, minha amiga e eu experimentamos um mundo de coisas. Sonhos e realidades, distâncias e unidade.
De pré-universitários a avós, passamos por quase tudo que uma vida plena pode propiciar: amamos nossos amores, tivemos outros ricos amigos, rimos com todos, brincamos demais, lamentamos juntos, comemoramos filhos, aniversários e coisas tolas. Acompanhamos nossas vidas.
Há meses atrás, ela morreu. Poucos dias antes, fiquei no hospital fazendo-lhe companhia. Ela sabia perfeitamente do seu estado, que lhe faltavam poucas horas ou dias. Num dado momento eu a percebí me fitando em silêncio e lhe sorrí. Ela então comentou:
- Que merda, heim Aluízio...
Respondí que, sim, era mesmo uma merda, mas que devia olhar, não o presente, mas o passado, tudo que fora feito e vivido e que era muito. Num ímpeto, acrescentei:
- Vou morrer de saudades!
Ela ficou me olhando e disse:
- Não seja egoista. Vamos fazer o seguinte: eu morro e você sente saudades.
Ambos sorrimos em despedida e cá estou eu, fazendo minha parte.



Chuvas de Verão

"Catástrofes naturais nunca foram novidade, em qualquer tempo ou lugar do mundo...o que salta aos olhos é a frequencia cada vez maior, bem como o nº de vítimas!"
(Chapelaça, fake orkutiano na comunidade “Os Dois Lados da Moeda”, comentando os trágicos acontecimentos deste verão de 2011)

Minhas ponderações são, a um só tempo, fatalistas e esperançosas, mas no momento, revoltadas:

Primeiro: lamento pelas vítimas e pela dor dos que sobreviveram.

Segundo: concordo com a frase do Bagaça*, mas a dna. Natureza tem muito pouco a ver com isso. Ela continua chovendo no verão e secando no inverno, como sempre fez. Se há algum fato novo (intensidade das chuvas, aquecimento global e oscambau) é totalmente previsível por qualquer instituto de meteorologia sério.
  (*) Como costumo, ironicamente, chamar o Chapelaça na mesma comunidade.  

Terceiro: acrescento que a coisa toda vai piorar bastante antes de melhorar, se é que vai melhorar algum dia, muito mais gente vai morrer e a maioria, como sempre, entre o povão.

Quarto: é aqui que o bicho pega. Quem é que joga garrafa pet, copinho de plástico, bosta, bituca de cigarro, preservativo, absorvente, comida, papel, lata, isopor, fogão velho, sofá idem, carcaça de carro, presunto (cadáver mesmo) e tudo o mais nas encostas, valas, esgotos (quando existem), rios, mares, poços etc., etc., etc... ?  Quem é que constrói barraco sem alicerce nenhum na beira do barranco, na beira do córrego, na beira doscambauaquatro? Quem é que derruba toda a vegetação existente para invadir e ocupar (e vender) um quadradinho de terra em área protegida ou degradada? Quem é que elege os criminosos que fingem que não vêem todas as irregularidades em troca de voto na próxima eleição? Quem é que elege a(s) besta(s) que redigem uma reforma do código florestal que arregaça as pernas para tudo isso ficar mais fácil?

Quinto: eu mesmo respondo, o povão. O mesmo povão que vai morrer por que não tem educação, preparo, civilidade, respeito à ordem e às leis, e que vota num Tiririca, ou Siririca, por que é engraçado. E junto com o povão boçal, morre também um monte de gente que pensa, que é séria, que se dedica, que ajuda, que obedece as leis e o bom senso, que pensa na coletividade e que é tida como otária por esse mesmo povão experto. Note-se que esse experto está em todas as classes e já ouví muitos poderosos se vangloriarem das suas falcatruas, fraudes e mentiras. O importante é fazer bem feito... só que o poderoso está seguro no seu condomínio bem alicerçado e o povão está fu e morto no primeiro aguaceiro.

Sexto: chorar todo mundo chora, lamentar todo mundo lamenta, seja o(a) falecido(a) morto por enxurrada, tiro ou doença. Mas quem é que arregaça as mangas e vai batalhar pela educação (não é só escola, não, é formação pessoal, cultural e social) desse mesmo povão que vai continuar morrendo de uma causa só: IGNORÂNCIA.

Sétimo: depois de oito anos de endeusamento dessa mesma ignorância e do despreparo, reverter todo este quadro para tentar evitar mais mortes inúteis e anunciadas ficou mais difícil, muito mais difícil. Não será nenhuma atitude hipócrita, santarrona e politicamente correta na hora do aperto (e só na hora do aperto), que irá colaborar para nos desvencilharmos da vasta ignorância civil e cultural em que nos encontramos. Vamos morrer disso.


Extraño



Ouça enquanto lê. E depois ouça novamente...

A estrada Vieja de Naufalito era antiga como a história. Perdida nas encostas ermas do oriente andino, só era alcançada a partir de Chitaclan, um lugarejo de vida incerta, sobrevivente das muitas intempéries naturais que sobre ele se abatiam com uma regularidade só comparável à do vento transitando nas alturas. Um povo rústico, supersticioso, habitava o local com um estoicismo tibetano, talvez um traço comum em cordilheiras de altitude elevada, ar rarefeito e solidão. Homens e mulheres apresentavam uma compleição robusta, atarracada, com expressão cambiável; ora risonha e tímida, ora temerosa e silente. De índole fervorosa, em tudo estacavam para pedir as bênçãos a la madre, desde o cultivo ou criação dos parcos recursos com que se mantinham, até os partos, casamentos, batizados e enterros, eventos marcantes de sua cultura afastada de tudo.
Dentre eles se sobressaía um ancião de idade incerta, enrugado como as faldas tortuosas e labirínticas de La Vieja, como chamavam aquela estrada impossível, no qual as características do povo da vila se condensavam e expandiam de forma semelhante à chama de uma vela. A cada palavra, das poucas que dizia, percebia-se a construção das sílabas, não como fonética, mas enquanto significado. Brotavam, por assim dizer, novas de sentido, redimidas de impurezas, precisas e penetrantes. Foi ele, Naufalito, depois de alguns dias de intensa observação, quem me contou a lenda de La Vieja segundo a tradição dos antepassados.
Antes, é preciso descrever um pouco aquela serpente incrustada nas montanhas sob a neve de seus picos. Chega-se a ela através de um carrossel de penedos e precipícios regados por correntes que despencam dos altos. Mais alta ainda e com desvãos mais aterrorizantes, a estrada Vieja se inicia do nada, em meio a pedregulhos e arbustos esparsos surgidos com o verão. Subitamente o caminhante percebe-se numa estrada e não numa trilha. A paisagem intacta e igual guarnece da mesma maneira os arredores, as subidas e descidas não se alteram, os sons, a luz intensa, o céu infinito acima, nada muda. Apenas uma percepção íntima é capaz de criar a referência da transformação. De caminhante curioso e exausto, você passa a se sentir extraño, como me explicou Naufalito com um sorriso malicioso no semblante. E completou, dizendo que para cada pessoa La Vieja se inicia num momento diferente do percurso. Alguns, mais sensíveis, nem precisam ir a Chitaclan para encontrá-la, percorrem-na ao longo da vida a partir de qualquer lugar onde estejam, extraños entre pessoas comuns, tentando aparentar vulgaridade sem lograr, entretanto, ocultar sua singeleza. Foi assim que Naufalito, entre longos silêncios e palavras cristalinas, iniciou sua narrativa permeada de expressões locais ininteligíveis, da qual extraí este resumo.
“Os que descobriram a estrada pela primeira vez, viram que ela já estava ali há muito tempo quando começaram a percorrê-la. Inicialmente, sentiram uma inquietude, a suspeita de que estavam fazendo algo errado, ou diferente, que não conseguiam definir. Chegaram mesmo a acreditar que tal caminho os levaria à perdição, à execração e outras adversidades que sucedem ao que é diverso. Tentaram se comportar como todos os demais a sua volta, mas, frequentemente eram admirados com desconfiança, quando não admoestados pelos circunstantes de uma maneira piedosa ou agressiva, conforme a disposição da pessoa que o fazia. Passaram a se cuidar para exprimir opiniões; cautelosos, procuraram comportamentos rituais que neutralizassem sua personalidade exótica em meio à sociedade homogênea. Afinal, se convenceram de que eram realmente estrangeiros em seu próprio ambiente. Observações, percepções, raciocínios e, consequentemente, conclusões, possuíam um matiz que se diferenciava das cores e sentidos da maioria. Alguns poucos, reconhecendo-se, se aproximaram e, formando um pequeno grupo, partiram em expedição pelos cumes e grotas da estrada. A cada povoado ou grande cidade que chegavam – naqueles tempos eram muito distantes as paradas e desconhecidos os perigos – eram de certa forma negligenciados como forasteiros de hábitos e costumes surpreendentes. Como as águas de um rio mais leve no leito de outro mais denso, mantiveram sua temperatura e fluidez como se fizessem parte da mesma corrente, porém com meandros e remansos exclusivos.
Ao longo das gerações, os membros dessa tribo desenvolveram maneiras próprias de lidar com as coisas, desde as comezinhas até as grandiosas, proliferando por todo o mundo não através da reprodução genética, mas por um peculiar método de reconhecimento intuitivo dos seus pares. Como uma confraria, até os dias de hoje os extraños se atraem, se apóiam e se ajudam, sem detrimento das suas relações sociais, profissionais ou afetivas no mundo em geral. Consolidaram a noção de que, com o mesmo sortilégio, a mesma forma mágica com que se inicia, La Vieja nunca termina. Percorre este e outros mundos em idas e voltas sem fim, a não ser em Chitaclan, onde um povo obediente e resignado, todavia firme e independente, mantém seu pequeno trecho visível limpo e permanente para os viajantes que não conhecem volta.”
Com este mistério Naufalito, contente, apontou para frente e, acompanhando seu gesto, olhei para o norte através da vila a nossa volta e percebi, com uma sensação de paz, a serpenteante estrada que continuava através dos Andes, descia às planícies atravessando outras paragens e continuava infinitamente. Como se não tivesse rumo, destino ou motivo, enveredei novamente por ela e aqui estou. Ou melhor, estamos: extraños, nos reconhecendo, nos apalpando e brotando, por assim dizer, novos de sentido, redimidos de impurezas, precisos e penetrantes. Como as palavras de Naufalito.


Ninfetas

Cheguei à festa tarde, todo mundo já estava lá. O Edú me chamou de lado e disse que ia me apresentar uma mina, não precisava me preocupar nem cantar muito. Ela já tinha topado com outros e era super gente fina. Só levar prá casa e... crau!
Eu tinha, então, 25 anos, fui até a saleta onde ela estava, apresentações feitas, começamos a conversação. Monólogo seria mais apropriado, pois ela estava tímida, calada e sorridente. Tentei algumas aproximações, todas aceitas passivamente, mas sem sustos. Perguntei sua idade e me disse que tinha 13 anos. Parecia menos.
O Edú passou por ali pouco depois, nos viu e perguntou: - Vocês ainda estão aí? Estávamos, e ali continuamos. Sentia-me cada vez mais mais desconfortável: não criava coragem para convidá-la a sair, era uma criança, e percebia os amigos prestando atenção. Pedí licença, caminhei até o lavabo à entrada, disfarcei, peguei meu carro e fui embora. Sozinho, morrendo de tesão, medroso e imaginando a gozação que viria.

Eu ia à casa de minha amiga amiúde. Tínhamos a literatura em comum, pretendíamos publicar, e eu passava por lá para concluir algumas tarefas, mesmo ela não estando. Separada, três filhos que gostavam muito de mim e eu deles. A mais velha com 15 anos, Cris, era quem me abria a porta. Dava-me beijos, um abraço mais apertado do que o esperado por mais tempo do que seria normal. Eu, aos 40 anos, casado, tentava disfarçar minha excitação que ela, inocentemente, não percebia. Ou eu imaginava que não. Começava a trabalhar e, após algumas vezes, percebí que quase sempre ela ia tomar banho, do qual saia enrolada na toalha e ia para seu quarto, não sem antes passar pela sala algumas vezes. Uma tarde, com a mãe dela presente, voltou para a sala com um shortinho enfiado e um top folgado e semi transparente sobre os seios empinados, sem soutien. Eu e minha amiga chegamos a rir da falta de jeito de Cris por estar ali seminua.
Na ocasião seguinte, quando estávamos sós, conversei com ela abertamente: disse-lhe que me sentia excitado com os abraços, afagos e exibições dela. Perguntei por que fazia aquilo. Cris corou violentamente, balbuciando que não sabia, mas gostava de mim e se sentia à vontade na minha frente. Ficamos ali durante um longo tempo, fizemos café, falamos abertamente, respondí-lhe as perguntas mais íntimas e, ao encerrarmos sem mais nada acontecer, sabíamos os dois que podíamos confiar um no outro. Até hoje confiamos. Alguns dias depois, conversei também com minha amiga sobre o ocorrido e, sem culpas ou recriminações, aprendemos um pouco mais sobre crescimento.

Conhecí Ana pela internet. Eu estava separado, 52 anos, e o virtual estava se transformando numa boa ferramenta para fazer novas amizades. Trocamos palavras em chats, e-mails com fotos, confidências picantes e daí passamos para o telefone. Ana tinha 18 anos, trabalhava e estudava, morava com a família e era noiva, assim era ela quem ligava. Jamais nos escondemos um do outro, ela sabia, e queria que assim fosse, que nosso caso era só tesão. Confessou-me suas fantasias com um coroa, disse que desde pequena sentia-se assim e que, antes de casar, queria realizar seu sonho. Daí para um encontro, foi rápido. Passamos uma tarde inteira em minha casa com total liberdade e quase todas as variações em torno do sexo, da entrega e da posse. Autenticamente, foi uma tarde de sangue, muito suor, lágrimas e muito gozo. Somente então eu soube ter ela 17 anos recém completados.
Nunca mais nos vimos. Respeitei integralmente o compromisso de não procurá-la. Ela permaneceu durante muitos anos, mesmo depois de casada (e feliz, segundo me dizia) mandando beijos no aniversário e Natal, oferecendo sua gratidão e afirmando que eu seria seu sempre inesquecível coroa. Para mim também foi, não só inesquecível, mas divino.








Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos

Algumas coisas costumam irritar as mulheres. Não se trata de simples contrariedades, pequenos hábitos de displicência ou descuido, coisas do dia a dia de um casal, que ocorrem independente da cultura, origem, nível social ou nacionalidade “delas”. Pela minha experiência em convivências diversas, sem pretender esgotar um assunto, por si só interminável, listo abaixo alguns crimes mais comuns:

- deixar a tampa do vaso levantada e/ou molhada. Obs. - pingar no chão: pena máxima.

- usar o controle remoto além do óbvio mudar de UMA  estação para outra UMA estação.

- não notar aquele meio dedo que ela cortou no cabelo.

- não responder eutambémteamomô TODA vez que ela diz que te ama.

- não parar de falar com um cliente/paciente ao telefone,de imediato, quando ela pergunta, passando pela sala: - , sabe aquela minha presilha azulzinha?

- deixar de pagar alguma conta, mesmo que exclusivamente sua.

- esquecer a data de aniversário daquele dia que trocaram o chiclete de boca sem usar as mãos. Ou do dia que andaram pela primeira vez gôndola (aqui, pode ser asa delta, charretinha, Ferrari do Alfredo ou qualquer outro veículo extravagante).

- dizer que ela engordou.

- não dizer que ela emagreceu.

- esquecer a toalha molhada em cima da cama (cueca no banheiro tipifica o mesmo crime)

- fumar na cama (em alguns casos extremos, fumar em qualquer lugar).

- não responder prontamente qual roupa fica melhor para a festinha do filho da Neusa (aquela empregada que vocês tiveram há 12 anos atrás e que nuncamaisarrumeioutraigual).

- coçar o saco (em qualquer circunstância). Obs. - arrumar o cós da calça que está dilacerando os seus testículos é considerado equivalente.

- cutucar o nariz.

- manter um odor corporal idêntico ao de qualquer ser humano que acabou de mudar de lugar (pela quarta vez em menos de 15 minutos) aquele guarda roupas do séc. XX (sim, já é considerado antiguidade, ignorante!) para ver onde fica melhor.

- idem acima, para os casos de: dirigir 9 horas seguidas para ir visitar a tia Gustinha, fazer uma hora de flexões na academia paraperderessabarrigaindecente, descarregar as compras do mês do carro e ajudar a guardar tudo nos armários comodeveser.

- suar.  

- deixar de dar sua opinião, necessariamente solidária, sobre aquela roupa rídicula datuaprima.  

- comer com a boca aberta. Obs. - comer com as asas abertas: mesma pena.

- bocejar quando ela está falando.

- beber, dar um golinho, degustar, tomar, saborear, passar perto de uma cerveja com os amigos. Gravame: pelo mesmos motivos, chegar tarde, ficar bêbado, vomitar no tapete, ser internado para tomar soro, morrer.

- ver, assistir, participar, dar apoio, de qualquer forma mencionar, lembrar, sugerir, pensar, imaginar ou até mesmo sonhar com qualquer coisa similar ou assemelhada a futebol.

- idem acima, para outras mulheres que não sejam a mãe, a sogra, a irmã e a madre Tereza de Calcutá. Obs. - nãoháhipótese de existir outra exceção além das exceções já estabelecidas.

- não achar lindo, sublime, gracioso, fofucho, inteligente, leal, imprescindível, aquele poodle histérico que late desvairadamente cada vez que você tem uma diástole.

- deixar para lavar a louça no dia seguinte.

- peidar (arrotar também é aceito como peido pelos pesquisadores em geral).

O estoque é imenso, variado, sortido, classificado em desordem analfabética e continua sendo abastecido diariamente por fornecedoras das melhores (e piores) procedências. Então vou relacionando (aceito sugestões ou complementos pertinentes), para ver se me livro logo, senão de todos, pelo menos de alguns crimes hediondos e inafiançáveis, pecados mortais que irão me lançar ao fogo dos infernos, cometidos durante minha longa carreira de canalha, galinha, cafajeste, mal educado, filho-da-puta, insensível, vai-tomar-no-cu de várias gradações, vocênãopresta de todas as gradações, greves sexuais, menstruações de catorze dias, machista, corno, pulha, bêbado, vagabundo, biltre (sim, teve uma que me chamou disso) e o recorrente recordista precisamosdiscutirarelação.
Como disse no início, algumas coisas costumam irritar as mulheres. Esta crônica, por exemplo, antes mesmo de ser publicada, já me custou dois jantares, quatro cafés no Fran’s, uma diária no motel Harmonia e um mês de dedicação pessoal, telefônica e virtual a uma delas. Ainda bem que não dei o cheque para aquela viagem a Fernando de Noronha...


"Só dá ela por aqui"



O título acima não é meu. A exclamação pertence a uma apaixonante criatura ao constatar a presença, realmente notável, de outra apaixonante criatura nas minhas coisas e viveres. 
Todavia, penso eu, isso não é inteiramente verdade, várias outras também dão por aqui... por ali, por lá ou acolá, formam uma espécie de mata ciliar das minhas fontes, açudes e nascentes. 
Acontece com relacionamentos, não necessariamente mais antigos, porém mais consistentes: aparecem mais, demonstram (e têm) mais intimidade, conhecimento, presença; de uma forma ou outra, recebem uma atenção diferenciada, mais próxima e bem mais comprometida. 
Creio que isso faz parte da natureza das coisas e processos amorosos, são raizes se aprofundando na terra às vezes nem tão fértil assim e, para quem está a contemplar, se refletem nas copas viçosas e densas acima da superfície. Não sabe, o transeunte, quando aquela semente ali foi depositada, quanto tempo para se estabelecer, tantas secas ou pragas superou até se tornar rijo lenho enterrado no bem querer de um homem. Fizeram por merecer suas frondes vistosas, sua sombra refrescante, seus frutos suculentos e doces.
São meus amores, minhas queridas. No meu solo resistente e pouco moldável entranharam seus seres e se tornaram parte da minha paisagem, meu cenário, meu biosistema afetivo.
Sem elas, teriam talvez erodido meus vales, secado minhas águas, desabado minhas montanhas e eu seria, devastado e ermo, um deserto de sentimentos no planeta cru da realidade.
Por tudo isso, sou um homem feliz: elas dão por aqui.



A PRACINHA


Sempre foi assim,

acho que começou bem cedo.

Ia na pracinha e via aqueles meninos grandes jogando Taco. Ficavam bravos, corriam e brigavam no jogo, dizendo palavrão e demonstrando força.
Eu acreditava e admirava aquelas coisas de homem: porrada, suor, competição e desprezo pelos outros.
De vez em quando um chorava, ou de raiva ou de dor, ou das duas coisas, e era justamente humilhado pela sua falta de coragem. Mijavam na roupa dele e deixavam ele pelado no meio da rua. Se fosse homem, ia a pé prá casa, sem se importar com nada mais do que sua vaidade ferida, cagando para os transeuntes e para as empregadas domésticas que a gente vivia tentando comer. Elas riam e gostavam...
O Dado ganhou a Jandira assim, num dia em que subiu na árvore onde estavam suas roupas molhadas de mijo quente, cheias de nós muito bem apertados, e pegou só a cueca, vestiu e foi bater papo com ela. Ele disse que comeu, mas eu acho que foi só amasso, por que a Jandira era noiva e não ia dar assim, prá um de nós, a não ser que tivesse carro e pudesse dar uns presentes, ir no Bolinha pagar uma cerveja, prá ela poder dizer prá todo mundo que a gente estava querendo namorar com ela, imagine!?  Mas o Cadú disse que comeu... sei lá, eu não comí, mas ela era bem mais velha, devia ter uns 20 anos e não ia dar bola para um pivete de pinto pequeno que ainda nem tinha estreado na turma.
Eu ficava olhando o jogo, ajudava a catar as bolas que caiam no bueiro ou se perdiam nos jardins e matos que compunham a paisagem da minha infância. Queria tanto ser como eles que, às vezes, ficava em casa treinando para ser macho: engrossava a voz na frente do espelho e me desafiava em vários tons, contraindo o pescoço e o peito como eles faziam, chutando o espaço hipotético do adversário, soltando perdigotos com a voz esganiçada e chutando o corpo lamuriante do derrotado com desdém: aprendeu?! Eu era bom nesses treinos, o outro sempre fazia aquilo que eu imaginava e eu tinha tempo para pensar o que fazer em seguida. Eu era bom mesmo.
Só que, na pracinha, não dava certo. Eu ia lá, fazia minha pose, bancava o fudidão, e acabava não sendo notado nem pelo pessoal mais velho, nem pelas meninas, nem pelas empregadas. Tinha mesmo que catar as bolas, com todo mundo dizendo que eu era um merda por que estava demorando. Aí vinha o Muralha, erguia a tampa do bueiro numa boa e mandava eu entrar lá dentro para pegar. Rápido, senão ele soltava em cima de mim. Claro que eu também era muito bom nisso.
O Muralha era um caso a parte. Ninguém se metia com ele, o cara mais forte do pedaço, temido por todos nós, respeitado pela turma do Morrinho, pelo cortiço da Iguatemí, pelo pessoal do clube e até pelos amigos do pipoqueiro que andou cantando a irmã dele e cansou de apanhar depois de tentar acertar o Muralha com uma corrente que trazia embaixo do carrinho de pipoca. Apanhou muito, mas só aprendeu a lição depois que voltou com os amigos dele para pegar o Muralha e ninguém teve peito de encarar aquele gigante que, placidamente, arrancou uma vara inteira de hibisco verde na frente deles, desfolhou na unha, experimentou no ar e ainda catou o quimono com a outra mão para atravessar o corredor polonês que eles tinham formado na entrada da rua. O Muralha era louco... mas era o maior ídolo: tinha carro, saia com puta da Brasil, comia a Jandira a hora que quisesse, batia em todo mundo e, no Taco, era invencível!
Ainda bem que eu tinha um amigo de verdade nessa turma. Era da minha idade e já era respeitado porque não era como eu, como todo mundo, não estava nem aí para o que achavam dele. Desde que tivesse calças Lee e sapatos, muitos sapatos do Spinelli, uns cashemires e aquele perfume argentino que todo mundo queria, ele era mais ele. A gente brincava escondido de bandido e mocinho, imagine se soubessem? Ele vinha em casa ou eu ia na casa dele, falávamos um monte para as empregadas, passávamos a mão na bunda delas, ou nos peitos se fossem grandes, e depois preparávamos uns coquetéis de leite com uísque (ninguém ia imaginar que tinha uísque no leite, não é?) e começávamos a brincar: trenzinho elétrico, carrinho, bandido e mocinho, de vez em quando uma punheta comunitária com os catecismos eróticos que eu ainda não sabia de quem eram. Mas eu era muito bom nisso também, punheta, o Alfredinho não conseguia esporrar nem mais longe nem com mais quantidade do que eu. Mesmo na fazenda do pai dele, quando a gente tomava leite de vaca sem uísque, ele conseguia ser melhor do que eu. Em compensação, ele foi o único cara na minha vida que ví encostar uma égua num barranco e comer a xana dela. Quer dizer, eu acho que era a xana, por que naquela época eu não sabia direito o que era uma coisa e outra, acho que dá para entender, não é? Ele me disse que também comeu galinha, não as cozidas ou assadas, nem aquelas como a Soninha, filha adotada de uma tia solteirona e idealista.  Galinha mesmo, ao vivo, mas ele dizia que elas morriam depois... não sei se é verdade.
Eu confessava tudo isto nas missas da São José, com nenhuma culpa e uma enorme vontade de repetir alguns pecados. Mas minha mãe dizia que se não confessasse iria para o inferno, as madres da escola também, então eu confessava e tinha a garantia de que até uma nova sacanagem estaria livre dos íncubos, súcubos e outras proparoxítonas. Nisso eu era bom também, acreditem. Aprendí antes da minha irmã mais velha o que eram ditongos e hiatos. Passei muito tempo sendo considerado o único cara que sabia o que eram silepses, anacolutos, essas coisas difíceis. Mas ainda não sabia dar porrada, apanhava até do Flores, muito menor do que eu, porém mais decidido.
Nesse tempo, quando São Paulo acabava na Rua Iguatemí, o ônibus elétrico 51 fazia a volta na Mario Ferraz, a Avenida Paulista tinha cinco ou seis prédios, o mais bacana o Conjunto Nacional e o Fasano com mesas na calçada; quando a gente brincava de brigar com as meninas que iriam nos apaixonar e os Jesuitas ainda eram alguma coisa que eu não tinha descoberto; nesse tempo em que a Jandira dava só para quem tivesse pinto grande e carro, percebí que alguma coisa estava errada comigo. Comecei a desconfiar que eu não era homem.
Pois é. Eu brincava de médico com minhas primas, não comia mas galinhava todas as empregadas de casa, fora as outras, era macho pacas em frente ao espelho do quarto,  vivia de pau duro e catava as bolas mais perdidas do planeta. Mas também percebia que todos os meninos - até o Muralha – precisavam conversar e se abrir. Então tentava me aproximar, falar dessas coisas e só perdia moral por ficar com esse papo de fresco, esse negócio de sentir medo, ter dúvidas, gostar das pessoas, ficar junto de quem se aprecia, querer brincar sem ter que dar porrada e maltratar os perdedores. Ainda não tinha aprendido as regras, não tinha pego aquele jeitão de quem quer que se foda o mundo,  aquele traquejo de ser displicentemente homem.
Só que precisava aprender, e rápido. Logo, iriam aprontar comigo, tirar minhas roupas na praça e eu precisaria estar pronto. Logo, iriam descobrir que eu e o Alfredinho bricávamos de bandido e mocinho escondido, que eu ainda não tinha comido ninguém e quando ia no Bolinha jogava fora, disfarçadamente, os Strega que pedia. Logo, logo, iriam perceber que eu gostava mesmo era de assistir Maciste contra os Dragões na Joaquim Floriano e ficar sonhando o resto da noite que eu era forte e poderoso, justo e condescendente. Talvez até descobrissem que eu era capaz de amar demasiadamente a Helga, uma vizinha alemã e linda, despudorada a ponto de tomar sol topless em pleno quintal da casa dela. E se soubessem que eu ia espiar o casal Alô Doçura, ali na Salvador Mendonça, pulando muros para ver a Eva Wilma saindo de casa maravilhosamente mulher, eu apaixonadamente menino? Até aí, até que tudo bem... mas saber que eu os olhava com olhos invejosos, cobiçando cada curva de ombro, cada músculo, cada gesto masculino, tentando fazer de mim um espelho deles? Iam me chamar de viado, claro! Tão claro, portanto, que para mim mesmo eu não era homem suficiente. E o pior é que ficava com um medo fudido de não ser mesmo.
Meu pai era homem, não precisava de ninguém para ser, só da minha mãe, eu acho. Meu primo subia na árvore do jardim, a mesma de que caí tentando, sozinho e rápido, isso eu via e ele era só 3 anos mais velho. Meus tios tinham histórias que eu desejava ter vivido, meu avô era macho, até enfiou um punhal na bunda de um cara mais desaforado e, além de tudo, não pagou nenhum mico. Até meu professor de religião, na escola, era de dar porrada, jogar bola e disputar mano-a-mano com a gente, alunos, o espaço da sala de aula. Eu bem que tentei ser amigo dele, mas acho que era frouxo demais para chamar sua atenção. E, ainda por cima, descobriram a farsa das silepses e dos anacolutos. Aí me ferrei de vez...
Voltei para a pracinha disposto a provar para todos que eu era macho, grande, forte, pintudo, esperto e que não estava nem aí para o que me pudessem fazer. Para provar, peguei um taco e falei: - Vou jogar!
Foi a melhor primeira e última partida de Taco da minha vida. Nem bem tinha começado o jogo, acho que a gente estava na terceira tacada, quando o Muralha disse que não tinha valido o ponto. Eu, na hora, lembrando do meu espelho didático, estufei a garganta e berrei: - Claro que valeu, porra! Cê tá querendo ganhar esse jogo no grito ou na bola?!
Todo mundo ficou olhando para mim como se eu fosse um cadáver. O Muralha, logo de cara, nem entendeu o que estava acontecendo, isso nunca tinha acontecido com ele, pelo menos não na Pracinha. Olhou para mim com uma cara de palerma, depois engoliu em seco, lembrou de quem era e veio andando com o taco na mão. Eu não arredei pé e comecei a falar antes dele erguer o taco. Aí ele disse: - Eu vou te matar, cara! E eu: - Sei que vai, mas que o ponto valeu, valeu. Ele encostou tanto a cara furibunda na minha que eu podia sentir os peidos dele saindo pela boca. E repetiu: - Vou te matar.
Já que eu estava morto mesmo, respondi: - Quer matar mata logo, mas eu não vou pagar meu primeiro jogo para você nem fudendo, pode dar porrada, pode fazer o que quiser, mas foi ponto e eu não vou catar porra de bola nenhuma!
Ele não me matou, mas, em compensação virou para a turma e falou: - Estréia ele. Foi aí que eu saí correndo, com todo mundo atrás de mim, aquela turma que eu tanto amava, me caçando como caçávamos as ratazanas que saiam dos esgotos, cercando, berrando, chutando quando tentavam retornar para os matos ou canos de onde tinham saído. E eu, ali, sem cano que pudesse entrar, era o bicho a ser aterrorizado. Claro que no fim me alcançaram, tiraram toda minha roupa e mijaram em cima, inclusive de mim. Eu não me senti nem um pouco estreado. Subi nas árvores, peguei o que consegui e voltei para casa achando que, além de não ser macho, era um cagado sem capacidade para achar aquilo tudo uma promoção, um reconhecimento, uma homenagem pelo fato de ter enfrentado o Muralha e saído ileso.
Fiquei com uma sensação de sujeira e solidão. Fiquei com nojo de me esfregar no banho, estranhamente não pelas mijadas, mas pelo fato de eu não ser homem como eles.



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Vida é um dom certamente divino. E, por divino, entendo a obra daquilo que é especial, único, transcendente, de uma diversidade absoluta e verdadeira, embora natural e comum. Um milagre espantoso, porém tão corriqueiro que, dentro de nossas rotinas, não nos damos conta dele.
Acontece a cada momento, a cada golfada de nosso coração, a cada inspiração, a cada olhar sobre a planície dos sonhos, nos penhascos de nossas dificuldades ou na confrontação dos crimes que cometemos. E os cometemos muitos, pobres criaturas falíveis.
Agradeço meu tempo. A época, ou épocas, que freqüentei. Por uma peculiar felicidade, a terra e o local em que nasci. As pessoas á minha volta, as tradições que recebi. Essa ebulição paulistana, caldeirão de raças desiguais, tantas tentativas, tantos seres em busca. Pessoas que me formaram, me transformaram, me transmutaram, tantas pessoas...
Um ser doce por natureza, onde conflitantes impulsos assolaram emoções as mais descabidas, um ser onde a harmonia dos contrários se fazia necessária, imperiosa, para permitir uma sobrevida. Um ser, eu, necessariamente neurótico, psicótico, bipolar e sobrevivente graças a um peito que nunca cessou de amar, além, por óbvio, das coincidências que me fizeram sair impune sobre todas loucuras que cometi.
Vida é um dom cortante. Decepa, extirpa, lacera, entra profundamente em todos os sentidos e vai além. Porém, a mesma faca que corta, regenera. A cada cicatriz, recompõe novas marcas, células que disparam sentimentos de mais desafios, mais buscas, maiores obstáculos.
Tenho uma história: tive família, tive mulher, tive filhos, plantei inumeráveis árvores, escrevi livros, poesias, textos e cartas. Cativei tão grandes, quanto infinitos amigos. Penetrei na vida de muita gente e as mudei, assim como fui por elas alterado. Compartilhei o que sou, aceitei o outro antes de qualquer diferença ou razão. E creio que o segredo, pelo menos o meu segredo, a minha magia, está nessa palavra: compartilhar.
Sinto-me assim. Resgatado em uma vida plena, cheia, intensa, arriscada e que acabou dando certo de alguma forma. Um ser milionário de emoções, experiências, paixões. Alguém que sofreu as tensões, decepções, mágoas e frustrações de qualquer um e que, entre esse pântano de dores e martírios, conseguiu enxergar a beleza até mesmo na dentada de seu predador.
É bom saber os enormes amigos que soube cativar e manter, inclusive na minha descendência. É bom ser amado, saber-se amado, e amar tão despretensiosamente.
É magnífico perceber, aos quase 60 anos, que meus sonhos de Peter Pan ou Pedrinho se realizaram. Descobrir-me capaz de tantas coisas e incapaz de outras, aceitar-me assim, e cumprir a meta de sabedoria que me determinei aos treze anos.
Vida é um dom produtivo.
Não tenho estatísticas sobre quantas vidas toquei, em quantas ainda vivo, sobre tantos rumos que tenha mudado ou decisões que tenha precipítado, ou ainda, quantos mantive à revelia de minhas ações.
Porém sei, dentro deste meu peito ofegante, quantas pessoas estão aqui, comigo, compartilhando este momento de simples realização. Sem medalhas ou louros. Sem bandeiras ou hinos. Só uma vida bem vivida, compartilhada. Um momento de paz.


Transcrição

"Revisitando o passado, podemos ver o quanto nossa visão do Universo mudou nas últimas centenas de anos. Para Cabral, em 1500, a Terra era fixa no centro de tudo. O limite do cosmo, a fronteira mais distante, era a esfera das estrelas fixas, supostamente feita de material cristalino. Deus reinava supremo sobre todos, uma presença constante na vida das pessoas. Na época de Tiradentes, na segunda metade do século XVIII, já era claro que o sol era o centro do cosmo... Para muitos filósofos e pensadores da época, Deus era o criador do cosmo e das leis que regiam seu comportamento, mas não interferia mais nos afazeres dos homens. Einstein, em 1917, usou sua nova teoria da gravitação para propor o primeiro modelo cosmológico da era moderna... A essa altura, para Einstein e muitos outros, Deus era uma abstração, uma metáfora da ordem matemática da Natureza, acessível à razão humana através da ciência. O primeiro pouso lunar ocorreu num cosmo em expansão, com uma idade estimada de alguns bilhões a vinte bilhões de anos. A composição química da matéria limitava-se aos 94 elementos da Tabela Periódica e mais fótons e neutrinos, ambas partículas que, na época, acreditava-se eram sem massa. Nas quatro décadas desde a caminhada épica de Neil Armstrong na Lua, nossa visão cósmica mudou radicalmente." (Criação Imperfeita / Marcelo Gleiser - Rio de Janeiro: Record. 2010).


Domingo, Deus e Desalento

Domingo que vem eu tenho uma festa. Vamos comemorar um ano da morte da Babi. Fico lendo e me pergunto: será que vamos ficar menores do que já somos?
Deus, meu caro, eu e você sobramos. Você com suas criações, eu com as minhas, somos dois inúteis. Passamos da época.
Mas tenho uma vantagem sobre você. Um vantagem tola, mas uma vantagem: não tem ninguém usando meu nome para comprar uma BMW no carnê, um chalé em Aspen, uma semana em Bora Bora. Eu não sou otário, você é.
Padre, bispo, aiatolá, monge, pagodeiros da fé, marketeiros da ignorância, seja como quiser chamá-los, estão ai, fazendo a festa e você não fala nada. Aceita como se não fosse do seu conhecimento, permite por sensaboria, tolera por desistência.
Eu? Eu me deprimo. Fico desgostoso. Leio e concluo que somos pequenos. Muito pequenos para ter alguma importância.
Fico ao lado da matéria escura do Universo, saboreio o amor cativo da Babi que se foi, soluço minha insignificância e espero. Eu fui feito para esperar. Sou, como você, uma ausência que não faz falta.


De tanto viver, a velha pele se enruga, a resignação se abate, a lágrima já não rola.
O lamento fundo se cala no peito e saio ao mundo para fazê-lo, ao menos, melhor.
Tentar ser menos tolo, abrir ainda mais o meu olhar, uma forma canhestra de orar.




Apaixonado


Alguém ali ou em outra parte, ontem ou hoje, alguém disse, alguém sempre diz em algum momento ou lugar, que eu estou apaixonado. Então eu queria informar, apenas, que reconheço alguns atos e fatos da vida com uma naturalidade que, estranhamente, não encontro na maioria das pessoas.
Explico: quando nasci, respirar deve ter sido algo que devo ter feito sem pensar, instinto, espontaneidade, pulsão vital; quando criança, devo ter explorado os limites da dor e prazer até aprender onde estava meu poder. Novamente a natureza induzindo meu crescimento sem qualquer planejamento. São coisas que não me lembro, suponho somente pelo que vejo, aprendi e vim a ser.
Das muitas coisas que lembro, posso afirmar sem erro, soube, no exato instante em que as experimentei que estava definitivamente contaminado por algumas, irrefreáveis e perenes em mim: o cigarro, a bebida, o sexo e a paixão. Ou seja, descobri-me altamente suscetível a contrair vícios. Sim, porque a paixão é vício. Deliciosamente viciante como todos os vícios, nos tornando dependentes, vorazes, necessitados daquela tragada insana, daquela dose a mais, do sexo coercitivo, da paixão sem a qual o amor é morno e entediante.
Então me viciei na paixão: nada mais tinha sentido, se eu não estivesse apaixonado. Quantas pessoas desprezei por não me apaixonarem? Poderia dizer o mesmo das bebidas que recusei, dos cigarros que não gostei, das gostosas que não transei, das vidas que não respirei por ser viciado em paixão.
Acontece que a gente cresce, o organismo envelhece, o médico reza uma prece e você começa a descobrir o lhe faz bem, o que lhe faz mal e aquilo que você, contra todos e todas, consegue administrar. Tomei minhas decisões. Parei de beber e de me apaixonar. O cigarro me aguarda no dia em que eu baixar na cama de um hospital por um motivo banal, com as complicações circulatórias, respiratórias e demais... problema meu, mas estou consciente do preço a pagar. E o sexo, finalmente, encontrou equilíbrio entre o tesão desmedido e a demanda das xoxotas reprimidas. De uma forma ou outra, estou feliz.
Mas, voltando à paixão: como funciona esse vício? Vejam que f
alo como dependente crônico: sei que se me permitir, irei até o fundo da loucura para vivê-la, serei capaz de matar por isso, assaltar, roubar, mentir, deixar de ser a sóbria pessoa que aprendi. Será que desejo trocar meu equilíbrio pela aventura de uma paixão? Não, da mesma forma que desdenho a bebida e me nego ao sexo sem prazer emocional, me oponho à paixão - talvez o vício mais viciante - e me apego ao amor. Nele descubro a lucidez que bem me faz ao bem fazer. Nele descubro, não o tédio, mas a realização gratificante de ver o outro alçar vôos e compenetrar-se da sua própria grandeza escondida, descobrindo mundos e se tornando gente. 
É nessa mornidão que me acolho, me aconchego e me liberto. Finalmente. 


Poeminha besta


A vida acontece.
A gente ama.
A gente odeia.
A gente não nota.
A gente ignora.
Quando a gente inveja,
a vida acontece.
Quando a raiva, 
o medo, a coragem 
estremece, falece. 


O problema aparece
quando a gente ama,
quando a gente odeia,
quando a gente nota,
quando a gente conhece.


Tão simples, tão fácil.
Basta não viver.
E nada disso acontece.


Preconceitos




































Sobre mundos e fundos


(Eu odeio pensar: diálogo mudo no orkut)


Vi você ali, no meu painel, no mundo que estou vivendo, nesse momento, nessa tela. 
Entrei aqui e li, somente, a primeira frase da sua janela, San, linda e bela:
- Já observou os pássaros ante às adversidades?
Pensei antes de ler o resto: o que é adversidade?
Aquilo que se espera que aconteça? A verdade? Os fatos?
E antes que minha amada San me interrompa, deixe-me dizer: adversidade é apenas a hipótese que não imaginamos possível, embora seja.
Adversidade é aquele canto que reprimimos para baixo da escada, no porão das nossas probabilidades e não aceitamos como factível.
Não?
Está ai a vida, plena de fricções, aflições, abluções, perdões, atentados, luzes e escuridões. Adversidade?
A quem enganamos quando acreditamos que tudo ficará bem? Em quem pensamos quando nada nos aflige? Deus?
A verdade é limpa, não tem fuligem ou jaça: adversidade é nosso estado natural e cabe a nós sobrepujarmos o que somos para alcançar a pureza.
Porém, lembre-se: a pureza não tem fome, não tem sede, não precisa, se despoja.
Eu prefiro ser humano.




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17 comentários:

Anônimo disse...

Que amor lindo! Depois algum desavisado é capaz de dizer que amor eterno não existe, algumas amizades existem para provarem a eternidade.
________________

Amor e paixão,é preciso temperar um pouco o amor com paixão...apenas para que não se torne uma solução fisiológica, rsrs. Mas a paixão, aquela coisa concentrada e desmedida é perigosa demais.

Beto Martini disse...

"- Vou morrer de saudades!
Ela ficou me olhando e disse:
- Não seja egoista. Vamos fazer o seguinte: eu morro e você sente saudades."

Catso, não preciso escrever nada, isso diz tudo...

BARJON DE MELLO disse...

Absolutamente extraordinário!

cristina disse...

Nunca mais irei dizer o que é amizade. Vou dizer que a viví.

Absoluto!

Rose Я disse...

A magia do momento quando li "Extraño" pela primeira vez, perdura em minha alma...

. disse...

Simplemente busnisimos tus textos, muy bien escritos
Vivi...emociona

Rose Я disse...

Faltou uma cosinha...atraso.
Mulheres em geral tem o hábito de atrasar, mas ficam irritadíssimas qdo o atrasado é o homem...rs

Anônimo disse...

Alguma coisa mais ou menos assim, mais ou menos ....
.
Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

Rose Я disse...

"Amor raiz" - Soneto

Esse amor é semente de raiz profunda
Tem vida no olhar, onde traz confiança.
É rio nascendo pra irrigar nossa ternura
Se lança em teu chão, fertiliza a esperança.

Acreditando então, nesse rubro poente.
Vivemos esse amor tão saudável e nutrido.
Que percorre límpido e livre nossas veias.

Esse amor que não pede juras eternas
Dócil, mas forte, que cresce entre espinho.
Transbordando a alma, irrigando o caminho.


Glória Salles - adaptado

Vera Arruda Reimann disse...

Humm! conheci boa parte dos apaixonates amigos citados. convivi... e vivi!!! sei dos laços, das linhas, das entrelinhas, das virtudes, dos afetos. fui até tida com quem ia dar um jeito em você! hahahaha só rindo mesmo.... nunca tive essa pretensão. nem queria esse fardo, já pensou? mas dei um certo jeito, ganhei nessa existência uma guerra junto com você. estive a postos, alerta, segurei sua mão, te carreguei no colo, te ajudei a lamber as feridas, fiquei calada quando o silêncio era necessário, velando seu sono.. até você não precisar mais. hoje estou lá longão, mas carrego você comigo, figura que me é tão especial. Um Amore eterno, por muitas vidas, existências perdidas, reencontros passados e presente. fica aqui o meu beijo no seu silêncio...

Anônimo disse...

Compartilhar esta lindo e perfeito, Alu, compartilho contigo até nas vírgulas!!!
Um beijo nos bigodes, Homem lindo que eu admiro sempre.
Ah! e amo!

Anônimo disse...

Um ano já? Será mesmo que a gente morre? Acredito que enquanto vivemos no coração de um amigo, estamos vivos...mas também eu não ia querer viver neste precioso coração como uma amargura ou saudade doída...eu ia querer viver nas risadas das lembranças das farras, dos trejeitos, palavras gostosas que ficaram marcadas...aí sim!!!Eu ia querer viver no coração dos meus amigos como uma boa alegria!!!!

Aluízio Casali disse...

Pois é, querida, um ano já. Conto meu tempo. O Popoto morreu em 70. A Cláudia em 2000. Meu pai em 82, minha mãe está viva. Fico registrando... quero descobrir, antes, em que ano morrí.

Unknown disse...

Penso que a gente more a cada dia que se vive. Ou seja, o ano q se afasta de todos no plano físico, já que no plano sentimental,se vive sempre!

Adorei seus textos, a forma como expões as emoções, o humor ácido, a maneira de nos deixar presas na leitura e te imaginar a cada cena...

Soninha disse...

Pôxa... é impossível não te admirar! Vou ser muito sincera: senti-me paralisada em sua presença, como uma mocinha que conhece um ídolo, entendeu? É terrível, feio, uma confissão boba demais... mas o que eu vou fazer? Não queria deixar de dizer isso! Era pra ter dito olho no olho, mas não consegui. Agora tá dito... bendito! Beijos, meu bichinho de estimação... rs

Márcia disse...

Acontece, mesmo que a gente não mexa uma palha para isto... as vezes ficamos pasmos com o que surge em nosso caminho , nos dias "como uma laranja ou assassinar-nos de imediato" nas palavras de Neruda...ainda bem que estamos sempre recebendo surpresas.

Lindo Alu, agradeço ao "acontece" por tu teres acontecido no meu caminho.

Vera disse...

Amore
vc finalmetne se entrega ao amor.... e à consciência plena e linda que te pertece! que lindo ler tudo isso... e sabê-lo leve e feliz! muita saudade de vc! bjo bjo